quinta-feira, 13 de março de 2014

Cidade Buraco




Farta dos sucessivos bombardeamentos de retroescavadoras, a Cidade decidiu:
- Mais vale ser uma cidade no buraco, do que um buraco de cidade!
Nesse mesmo dia mudou-se.

segunda-feira, 3 de março de 2014

A garrafa no fundo do mar



Acordou, meio baralhada, à deriva no mar. As correntes aprisionavam-na a um suave movimento ondulado. Não se lembrava do que acontecera no dia anterior. Sentia-se boiante e só.
Uma cabeça apareceu arrastada na corrente. Cruzou-se com ela e ela chorava. A cabeça não trazia corpo agarrado, e talvez por isso chorasse. Tinham decepado a cabeça do corpo. Mas a cabeça continuava viva. E o corpo também, algures. Separaram-se, por força das circunstâncias, e a cabeça emigrara.
A garrafa, apiedada, socorreu-a e deixou-a abrigar-se dentro de si.
Porém, outra cabeça apareceu. E outra. E mais outra. E outra ainda. Umas riam, outras meditavam, outras gritavam e havia até quem recitasse poemas de amor. E a garrafa já não conseguia suportar o peso de tantas cabeças. Foi descendo, foi descendo, foi descendo até ao fundo do mar. Já não seguia com as correntes e acorrentara-se de vez àquele lugar no nada.
As vozes não paravam de ecoar dentro de si e cada uma tinha uma história, uma mensagem que não merecia ser calada. Arrastou-se tentando alcançar uma qualquer costa. A garrafa seguia, incansável. Passaram-se dias, semanas e meses, mas não aparecia terra à superfície. Suspirou. Ficariam ali esquecidas.
Uma voz rasante revolveu a areia do fundo do mar. Mãos, pés e corações vieram da praia em socorro das suas cabeças. Não podiam ter vindo os corpos todos, contudo vieram as partes mais necessárias.
Resgataram-se as vozes e a garrafa ficou. Despediram-se de novo: mãos, pés, corações e cabeças. A garrafa ficou. As mensagens foram entregues e a garrafa ficou.
Acordou, meio baralhada, à deriva no mar. Não se lembrava de nada do dia anterior. Sentia-se boiante e só.