segunda-feira, 5 de outubro de 2015

A Planta da (In)Decisão

Há vários dias que não dormia. Sentia-se exausto. Ao fim de tanto tempo submisso e calado, impunham-lhe a urgência de tomar uma decisão... a ele, que nunca quisera assumir responsabilidades!


Pediu conselhos à sua Planta da Decisão, que considerava muito inteligente e informada, mas nem mesmo ela estava em acordo: cada pernada indicava uma direcção, insistindo de que era a certa. Acenavam-lhe com papéis e dados contraditórios e vendiam-lhe opiniões como verdades absolutas. Ficou ainda mais confuso, sentiu-se menos confiante...
Encurralado, sem alternativa senão pensar pela sua própria cabeça, decidiu estudar o assunto. Ignorou os comentários da sua planta e foi procurar dados junto de entidades credíveis. Abriu os pdfs com os programas propostos e tentou compreendê-los...
Dava trabalho... era muito mais fácil deixar as outras cabeças pensarem por si, mas não desistiu. Esforçou-se e ao fim de algumas horas compreendeu...
Deitou a sua Planta da Decisão fora, afinal tão inútil, e jurou que a partir daquele dia seria o único responsável por si.
Acordou e acomodou-se à cama. Compreendi o quê? Não se lembrava...
Levantou-se, suspirou e como já era hábito, virou pelo mesmo caminho por onde seguia o resto das pessoas...

domingo, 28 de junho de 2015

E foi dos homens-estátua que nasceu o Homem


Sempre erectos, verticais, os homens-estátua seguiam com extremo rigor as regras instituidas. Nada faziam por si só, constantemente vigiados pela própria sombra, uma qualquer espécie de consciência exterior.
Um dia, um Homem nasceu sem sombra. Um erro programático na evolução perfeita da sociedade dos homens-estátua.
E sem sombra, este novo Homem pôde começar a ver o Mundo sobre outras perspectivas.

terça-feira, 16 de setembro de 2014

A burocracia está aí dentro do seu mundinho!


Acordou com uma certa azia e má disposição. Fez um chá de tília para acalmar o estômago e arrotou ofícios, despachos e memorandos. Andava viciada em comer velhos e desenquadrados documentos oficiais e por isso tinha a barriga cheia de desgastada burocracia.
Inscreveu-se nos B.A.! (burocratas anónimos), e conseguiu aguentar uma semana inteira sem ingerir documentos tóxicos. Mas o mundo parecia-lhe tão simples, descomplicado e demasiadamente fácil que não suportou e teve uma recaída. Sabia que a necessidade de burocracia existia apenas dentro de si, pelo menos fora o que o psicólogo lhe dissera, mas isso era precisamente o que mais a assustava. E quanto mais medo sentia, mais necessidade tinha da falsa segurança que os instituídos processos burocráticos lhe traziam. Um dia, drasticamente, sufocou num requerimento para isenção de procedimentos.

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Business Trees



Quando as árvores apareceram preparadas para negociar, o Homem nem queria acreditar. Resistiu à dura realidade de que as árvores sabiam do seu valor e que vinham assim exigir novas condições contratuais. 
O Homem barafustou, injuriou e praguejou. Queria mais e mais para si mesmo. Mas as árvores debateram-se ferozmente e romperam com os troncos pela mesa a dentro:
- Os termos do contrato são claros. É pegar ou largar! - disseram, em coro.
As árvores deram meia volta e o Homem pensou que ainda tinha tempo. Não percebeu que a ameaça delas era para hoje.

quinta-feira, 26 de junho de 2014

Lobisomem


Escondeu-se atrás das árvores... Era a sua oportunidade de assustar aquela criancinha... Aproximou-se muito devagar, bem devagarinho... Tentou não fazer barulho... Preparou-se... E na hora H... A rapariga desatou a rir-se!
O lobisomem ainda tentou ser mais assustador: rugiu, mostrou os dentes e deu traques violentos. Só que a criança não conseguia parar de rir... Ria, ria e ria! Desalmadamente!
O Lobisomem Careca encolheu os ombros. Sempre desejara assustar pessoas. Nada o faria mais feliz, mas se até as crianças gozavam com ele... Desistiu... O melhor era mudar de profissão! Ou não! Pensando bem, ainda não experimentara uma peruca...!


quinta-feira, 19 de junho de 2014

Sobressalto


O coelhinho de Passos Largos e Vista Curta fez por arranjar um novo emprego: uma grande oportunidade de carreira, que assumiria de forma altruísta, garantia, tendo sido obrigado, para tal, a mudar o seu percurso diário.
Confiante nos seus conhecimentos de geografia, traçou um novo caminho. Mas logo no primeiro dia esbarrou, sem mais nem menos, num enorme pedregulho. Ficou admirado. Nunca dera por tal! Tentou contorná-lo, mas o calhau era demasiadamente grande e não encontrou outra solução senão escalá-lo.
No dia seguinte, aconteceu-lhe a mesma coisa. Estranhamente, o pedregulho decidira permanecer ali, mesmo no meio da sua rota! Começou a andar em sobressalto. Todos os dias de manhã acordava angustiado, perguntando-se se aquela pedra ainda estaria no mesmo lugar.
Os outros coelhinhos tentaram explicar-lhe que o pedregulho sempre ali estivera, que era da sua natureza não se mexer sozinho e que haviam outras alternativas ao percurso diário que ele fazia.
Mas o coelhinho de Passos Largos e Vista Curta, teimoso, não queria encontrar outro caminho, pois aquele era o mais rápido... Achava ele... E insistia, e por isso todos os dias chegava cada vez mais atrasado. Claro que, para o coelhinho, o seu problema estava naquele pedregulho... uma pedra no seu "sapato"!

quinta-feira, 12 de junho de 2014

0 senhor 8

Já em casa, o 8 olhou-se ao espelho: tinha a sensação de até ser um número bastante perfeito, sendo redondinho e lembrando o infinito. Ocupava, inclusivamente, um elevado estatuto dentro do grupo das unidades, mas mesmo assim, não conseguia deixar de sentir uma pontinha de inveja do número 9. É que o 8 era quase o mais alto deles todos... só que lhe faltava o quase.


Então, mesquinho e ganancioso, o número 8 andava a tentar perder um bocadinho de si, só o suficiente para passar a ter uma bola e uma perna como o 9, em vez das suas duas bolas. Deitado na cama, todas as manhãs ele fazia exercícios, com grande esforço.


Mas um dia, ao acordar, percebeu que tinha perdido uma das suas bolas... Passou a ser um 0, e toda a gente sabe que ser 0 é não ser nada. Sentiu-se infeliz e frustrado: como é que tinha chegado àquela situação? Com o tempo, foi reconhecendo que tinha sido prejudicado pela sua inveja e ganância. Perdera tudo e agora já só queria voltar a ser alguém, mesmo que pequenino, e ser feliz com isso.


Um dia, decidiu visitar o seu vizinho 1, que morava ali tão perto. Simpatizaram um com o outro e o 0 ganhou um novo amigo com quem conversar. Descobriram que juntos formavam um 10. Unidos podiam não ser um grande número, aliás, o mais baixo das dezenas, mas valiam mais do que separados. E para além disso, a amizade não tem valor!