terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

O quadrilatero sem talento

A notícia chegou: estava dispensado do capítulo das figuras geométricas, onde sempre trabalhara, por não ser nada em concreto. Gerira uma equipa de extraordinários trapézios e paralelogramos, mas a verdade é que não tinha conhecimentos aprofundados sobre coisa alguma. Era, por assim dizer, uma figura abrangente, e a matemática necessitava de figuras mais especializadas.
Sentia-se exausto e ultrapassado. Talvez tivessem razão. Reformou-se. Decidiu que era altura de encontrar o seu próprio talento. Queria levar desta vida a satisfação de saber que tinha tido um. Experimentou ser um quadrado, um rectângulo, um trapézio isósceles e até mesmo um triângulo, mas nada... Continuou sem descobrir a sua verdadeira vocação.




Deixou-se cair na página:
- Nunca encontrarei o meu talento. Talvez nem tenha um para encontrar.
Entretanto, o quadrado substituira o quadrilatero. Por ter todos os lados com a mesma dimensão e todos os seus ângulos com noventa graus, consideraram-no a figura geométrica mais indicada para o cargo. Possuia uma especialização para a qual trabalhara muito e agora progredia na carreira por mérito próprio.
Porém, os problemas chegaram. A confusão gerou-se nos livros de matemática e ninguém percebia a matéria. O quadrado sabia muito de ser um quadrado, contudo não compreendia as especificidades do rectângulo e menos ainda as do trapézio. Descobriu a importância de se ser mais abrangente. De se ser um "especialista" em abrangência.




Pôs o seu lugar à disposição e regressou ao seu antigo cargo. Aconselhou a matemática a chamar de novo o quadrilatero, que regressou surpreendido e feliz... Acabara de perceber que não tinha, de facto, um talento em nada, mas sim um pouco de talento em tudo!



quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Chuva molha tolos



Parecia que sempre ali tinham estado, quietos e monocórdicos. Ninguém sabia de onde tinham vindo nem como tinham aparecido. Tinham-se simplesmente instalado na vida das pessoas. Encontravam-se em todo o lado. Enfeitavam os melhores restaurantes, as enormes casas, os hotéis luxuosos e as lucrativas empresas.
Esperara-se deles grandes inteligências, em proporção ao tamanho das suas cabeças, mas na verdade não se dera por nada. Andavam por ali, os cabeçudos, sem grande utilidade, integrando um qualquer mobiliário urbano móvel.
Um dia vieram as chuvas torrenciais. O pânico generalizou-se pela cidade. As pessoas correram aflitas nas direcções mais impróprias tentando proteger-se, enquanto os cabeçudos permaneciam na ilusão de que fazia sol. Não davam por nada. Nem uma qualquer reacção tiveram. Tentaram chamá-los à razão, pediram-lhes que saissem da chuva, mas os cabeçudos continuaram na sua vida, de um lado para o outro, parecendo atarefados a fazer nada.
E enquanto se encharcavam e ensopavam, o resto das pessoas passeava na rua, aproveitando para se resguardar por baixo deles:
- Venha, cabeçudo! Tenho que ir apanhar o táxi!
- Eu preciso de ir ao supermercado! Acompanhe-me, cabeçuda!
Afinal, aquelas monstruosas cabeças até serviam para alguma coisa. Davam óptimos chapéus-de-chuva! E a chuva? Essa agora só molha tolos!


sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

O aspirador de Santa Augusta



Há muito que esquecera a sua tarefa: limpar, limpar, limpar. O mundo estava poído e sujo. As teias coziam buracos em erupção e as poeiras pairavam na atmosfera. Sim, estava na altura de limpar.
Agarrou no seu aspirador topo de gama e começou a sugar. Quase dois milénios de abandono deixariam marcas no mundo, sem dúvida! Sugou, sugou, sugou até que o seu aspirador deixou de trabalhar. Parou sem dizer nada, exausto, pronto a arrebentar. Que máquina poderia aguentar tamanha sujidade? E o mundo ainda com tanto por limpar!
Foi buscar outro aspirador, um mais velhinho mas que haveria de desenrascar. Porém, o aspirador assustado correu para Lisboa e decidiu mudar de vida. Transportar pessoas da baixa da cidade para o alto das colinas pareceu-lhe tarefa muito mais importante e própria para um aspirador.
Santa Augusta desesperou mas tentou ser justa. Se era essa a verdadeira vocação do aspirador, como exigir que ele fosse outra coisa?




Foi mudar o saco do topo de gama e aguardar que este recuperasse:
- Oh, céus! Se é a humanidade que suja, não cabe à humanidade limpar o seu lixo e assumir a sua responsabilidade de uma vez por todas?
Levantou-se e foi-se embora. Este não era trabalho para uma santa!

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Portas de Santo Antão



Virou a esquina do vazio, quente e seco, e procurou um sinal divino na areia do tempo. Quarenta dias, como que quarenta ladrões, disputavam a sua sanidade. Suportaria as dores do diabo e as tentações de Cristo. Ou seria ao contrário?
Uma, duas, três portas que antes ali não estavam abriram-se e no deserto nasceu um paraíso de sombras. Alucinações da fome e da sede ou tentações hipnotizantes do chamamento do diabo, resistiu-lhes.
As areias das dunas escorreram na ampulheta dos meses e deram a volta mais do que o prometido. Nada o obrigaria a cruzar portas escancaradas do pecado. Por livre vontade cruzou as portas da cidade. Regressou seguro. 

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Subir para baixo, descer para cima




Por alguma estranha razão só conseguia subir para baixo.  Apesar de já habituado, por vezes desejava viver nesse evidente pleonasmo físico de que subir é sempre para cima, mas fora a redundância, as suas pernas ou a sua mente acreditavam que subir era para baixo.
Um dia o chefe chamou-o e deu-lhe os parabéns. Devido ao seu bom desempenho, ia ser promovido! Que excitação! Finalmente subiria para cima! Ah, contudo, atendendo à crise, o seu ordenado seria reduzido em apenas um vigésimo. Apenas... Em respeito e consideração ao seu bom trabalho.
Nesse mesmo dia, o seu chefe foi punido pelo mau desempenho, e atendendo à situação, o seu ordenado seria apenas aumentado um vigésimo. Apenas... em castigo pelos maus resultados.
A partir desse dia percebeu que só descendo para cima chegaria mais longe! E jurou, que a partir desse dia, nunca mais subiria para baixo.