terça-feira, 16 de setembro de 2014

A burocracia está aí dentro do seu mundinho!


Acordou com uma certa azia e má disposição. Fez um chá de tília para acalmar o estômago e arrotou ofícios, despachos e memorandos. Andava viciada em comer velhos e desenquadrados documentos oficiais e por isso tinha a barriga cheia de desgastada burocracia.
Inscreveu-se nos B.A.! (burocratas anónimos), e conseguiu aguentar uma semana inteira sem ingerir documentos tóxicos. Mas o mundo parecia-lhe tão simples, descomplicado e demasiadamente fácil que não suportou e teve uma recaída. Sabia que a necessidade de burocracia existia apenas dentro de si, pelo menos fora o que o psicólogo lhe dissera, mas isso era precisamente o que mais a assustava. E quanto mais medo sentia, mais necessidade tinha da falsa segurança que os instituídos processos burocráticos lhe traziam. Um dia, drasticamente, sufocou num requerimento para isenção de procedimentos.

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Business Trees



Quando as árvores apareceram preparadas para negociar, o Homem nem queria acreditar. Resistiu à dura realidade de que as árvores sabiam do seu valor e que vinham assim exigir novas condições contratuais. 
O Homem barafustou, injuriou e praguejou. Queria mais e mais para si mesmo. Mas as árvores debateram-se ferozmente e romperam com os troncos pela mesa a dentro:
- Os termos do contrato são claros. É pegar ou largar! - disseram, em coro.
As árvores deram meia volta e o Homem pensou que ainda tinha tempo. Não percebeu que a ameaça delas era para hoje.

quinta-feira, 26 de junho de 2014

Lobisomem


Escondeu-se atrás das árvores... Era a sua oportunidade de assustar aquela criancinha... Aproximou-se muito devagar, bem devagarinho... Tentou não fazer barulho... Preparou-se... E na hora H... A rapariga desatou a rir-se!
O lobisomem ainda tentou ser mais assustador: rugiu, mostrou os dentes e deu traques violentos. Só que a criança não conseguia parar de rir... Ria, ria e ria! Desalmadamente!
O Lobisomem Careca encolheu os ombros. Sempre desejara assustar pessoas. Nada o faria mais feliz, mas se até as crianças gozavam com ele... Desistiu... O melhor era mudar de profissão! Ou não! Pensando bem, ainda não experimentara uma peruca...!


quinta-feira, 19 de junho de 2014

Sobressalto


O coelhinho de Passos Largos e Vista Curta fez por arranjar um novo emprego: uma grande oportunidade de carreira, que assumiria de forma altruísta, garantia, tendo sido obrigado, para tal, a mudar o seu percurso diário.
Confiante nos seus conhecimentos de geografia, traçou um novo caminho. Mas logo no primeiro dia esbarrou, sem mais nem menos, num enorme pedregulho. Ficou admirado. Nunca dera por tal! Tentou contorná-lo, mas o calhau era demasiadamente grande e não encontrou outra solução senão escalá-lo.
No dia seguinte, aconteceu-lhe a mesma coisa. Estranhamente, o pedregulho decidira permanecer ali, mesmo no meio da sua rota! Começou a andar em sobressalto. Todos os dias de manhã acordava angustiado, perguntando-se se aquela pedra ainda estaria no mesmo lugar.
Os outros coelhinhos tentaram explicar-lhe que o pedregulho sempre ali estivera, que era da sua natureza não se mexer sozinho e que haviam outras alternativas ao percurso diário que ele fazia.
Mas o coelhinho de Passos Largos e Vista Curta, teimoso, não queria encontrar outro caminho, pois aquele era o mais rápido... Achava ele... E insistia, e por isso todos os dias chegava cada vez mais atrasado. Claro que, para o coelhinho, o seu problema estava naquele pedregulho... uma pedra no seu "sapato"!

quinta-feira, 12 de junho de 2014

0 senhor 8

Já em casa, o 8 olhou-se ao espelho: tinha a sensação de até ser um número bastante perfeito, sendo redondinho e lembrando o infinito. Ocupava, inclusivamente, um elevado estatuto dentro do grupo das unidades, mas mesmo assim, não conseguia deixar de sentir uma pontinha de inveja do número 9. É que o 8 era quase o mais alto deles todos... só que lhe faltava o quase.


Então, mesquinho e ganancioso, o número 8 andava a tentar perder um bocadinho de si, só o suficiente para passar a ter uma bola e uma perna como o 9, em vez das suas duas bolas. Deitado na cama, todas as manhãs ele fazia exercícios, com grande esforço.


Mas um dia, ao acordar, percebeu que tinha perdido uma das suas bolas... Passou a ser um 0, e toda a gente sabe que ser 0 é não ser nada. Sentiu-se infeliz e frustrado: como é que tinha chegado àquela situação? Com o tempo, foi reconhecendo que tinha sido prejudicado pela sua inveja e ganância. Perdera tudo e agora já só queria voltar a ser alguém, mesmo que pequenino, e ser feliz com isso.


Um dia, decidiu visitar o seu vizinho 1, que morava ali tão perto. Simpatizaram um com o outro e o 0 ganhou um novo amigo com quem conversar. Descobriram que juntos formavam um 10. Unidos podiam não ser um grande número, aliás, o mais baixo das dezenas, mas valiam mais do que separados. E para além disso, a amizade não tem valor!




domingo, 1 de junho de 2014

Raiz-do-chão, raiz-do-céu



Quando a raíz-do-chão tocou sem querer a raíz-do-céu, uniram-se dois mundos num só: o das árvores práticas, com os "pés" bem assentes na terra e concretizadoras; e o das árvores teóricas, sonhadoras e idealistas por natureza, com múltiplas perspectivas sobre a terra. E só então, o Mundo se sentiu completo.





quinta-feira, 22 de maio de 2014

Nossas mãos teimosas



Estava esfomeado. Tinha à sua frente uma deliciosa sardinha assada. Observou as suas mãos: a esquerda e a direita. Não paravam de discutir entre si. Por isso, ele continuava com fome. Suspirou. A direita insistia em que era capaz de escolher o peixe sozinha. Pegou na faca, mas só conseguiu amassar a sardinha. Veio logo a esquerda, que garantiu ser ela habilitada a resolver o assunto. Não quis ajuda. Agarrou no garfo e esmigalhou ainda mais a sardinha. O Homem assistia, impávido, à destruição do seu alimento. Não queria ser forçado a tomar uma posição, mas a fome não o largava. Tomou, então, o controlo das suas  mãos e exigiu a cooperação inevitável: a esquerda agarrou o garfo e segurou o peixe, enquanto a direita, com a faca, tirou a pele e as espinhas. A fome foi finalmente saciada.

terça-feira, 13 de maio de 2014

As obras do outro, tenho. O gato saltou.


Quando acordei tinha aos meus pés um outro eu, como que um pedaço de alma desprendida de mim mesmo. Olhei-o e em tudo era igual. E o meu outro eu fazia o que me lembrava, instantes depois, de ter sido eu próprio a fazer. Ouvi um miado. Uma redoma à minha volta dilatava-se num ritmo cardíaco. Um solavanco e outro miado. Outro miado e um solavanco. O vermelho do céu e da terra unia-nos, a mim e ao meu outro, como cordões bem apertados a este mundo. Outro solavanco... uma luz... e... o gato saltou...

sábado, 10 de maio de 2014

O Homem cobarde




Sabia como resolver o problema e sabia qual a atitude certa a tomar. Fez até menções de falar, mas depois pensou:
- Para quê?
Então encolheu os ombros e calou-se. Preferiu ignorar, seguindo em frente como se nada fosse.

terça-feira, 15 de abril de 2014

Tesoura, papel, pedra

Um dia, a tesoura apercebeu-se de que o papel vencia sempre a pedra. Começou a pensar no assunto e fez as suas contas:
- Ora, se eu venço o papel que vence a pedra... Então eu sou a mais forte de todos!
E perante tal constatação, já nem esperou pelo dia seguinte: desafiou o papel, venceu-o e escravizou-o.


O papel, por sua vez, não quis ficar na mó de baixo e nesse mesmo dia derrotou a pedra, fazendo dela sua escrava. Assim, mesmo que de forma indirecta, a tesoura passou a dominar os outros dois.
Até que um dia, farta de estar no fundo da hierarquia e de ser explorada e maltratada, a pedra revoltou-se:
- É certo que sou vencida pelo papel... Mas eu venço a tesoura, que vence o papel!
E logicamente, a pedra considerou-se a mais poderosa de entre os três. Assim, desafiou a tesoura, que depressa sucumbiu. Um novo ciclo de escravidão teve início, só que com a pedra a dominar a tesoura e por intermédio desta, o papel.


Contudo, também um dia o papel compreendeu que tinha o seu poder. Revoltou-se. Num violento combate, venceu a pedra e autoproclamou-se imperador.


A tesoura, agora na base da pirâmide, sabia que podia derrotar facilmente o papel: bastava cortá-lo aos bocadinhos... mas não o fez. Manhosa, convocou antes uma reunião com o papel e com a pedra, pois tinha planos mais ambiciosos:
- Amigos! Porque havemos de lutar entre nós? Porque não unirmos forças e dominarmos o mundo?
A tesoura convenceu rapidamente os outros dois de que juntos poderiam tirar muito mais proveito das suas maquiavélicas habilidades. Então, a tesoura, o papel e a pedra fizeram uma votação, que apelidaram de democrática, e elegeram-se senhores do mundo. Sob a alçada da tirania, do medo e da coação passaram a governar todas as tesouras, pedras e papéis.


quinta-feira, 13 de março de 2014

Cidade Buraco




Farta dos sucessivos bombardeamentos de retroescavadoras, a Cidade decidiu:
- Mais vale ser uma cidade no buraco, do que um buraco de cidade!
Nesse mesmo dia mudou-se.

segunda-feira, 3 de março de 2014

A garrafa no fundo do mar



Acordou, meio baralhada, à deriva no mar. As correntes aprisionavam-na a um suave movimento ondulado. Não se lembrava do que acontecera no dia anterior. Sentia-se boiante e só.
Uma cabeça apareceu arrastada na corrente. Cruzou-se com ela e ela chorava. A cabeça não trazia corpo agarrado, e talvez por isso chorasse. Tinham decepado a cabeça do corpo. Mas a cabeça continuava viva. E o corpo também, algures. Separaram-se, por força das circunstâncias, e a cabeça emigrara.
A garrafa, apiedada, socorreu-a e deixou-a abrigar-se dentro de si.
Porém, outra cabeça apareceu. E outra. E mais outra. E outra ainda. Umas riam, outras meditavam, outras gritavam e havia até quem recitasse poemas de amor. E a garrafa já não conseguia suportar o peso de tantas cabeças. Foi descendo, foi descendo, foi descendo até ao fundo do mar. Já não seguia com as correntes e acorrentara-se de vez àquele lugar no nada.
As vozes não paravam de ecoar dentro de si e cada uma tinha uma história, uma mensagem que não merecia ser calada. Arrastou-se tentando alcançar uma qualquer costa. A garrafa seguia, incansável. Passaram-se dias, semanas e meses, mas não aparecia terra à superfície. Suspirou. Ficariam ali esquecidas.
Uma voz rasante revolveu a areia do fundo do mar. Mãos, pés e corações vieram da praia em socorro das suas cabeças. Não podiam ter vindo os corpos todos, contudo vieram as partes mais necessárias.
Resgataram-se as vozes e a garrafa ficou. Despediram-se de novo: mãos, pés, corações e cabeças. A garrafa ficou. As mensagens foram entregues e a garrafa ficou.
Acordou, meio baralhada, à deriva no mar. Não se lembrava de nada do dia anterior. Sentia-se boiante e só.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

O quadrilatero sem talento

A notícia chegou: estava dispensado do capítulo das figuras geométricas, onde sempre trabalhara, por não ser nada em concreto. Gerira uma equipa de extraordinários trapézios e paralelogramos, mas a verdade é que não tinha conhecimentos aprofundados sobre coisa alguma. Era, por assim dizer, uma figura abrangente, e a matemática necessitava de figuras mais especializadas.
Sentia-se exausto e ultrapassado. Talvez tivessem razão. Reformou-se. Decidiu que era altura de encontrar o seu próprio talento. Queria levar desta vida a satisfação de saber que tinha tido um. Experimentou ser um quadrado, um rectângulo, um trapézio isósceles e até mesmo um triângulo, mas nada... Continuou sem descobrir a sua verdadeira vocação.




Deixou-se cair na página:
- Nunca encontrarei o meu talento. Talvez nem tenha um para encontrar.
Entretanto, o quadrado substituira o quadrilatero. Por ter todos os lados com a mesma dimensão e todos os seus ângulos com noventa graus, consideraram-no a figura geométrica mais indicada para o cargo. Possuia uma especialização para a qual trabalhara muito e agora progredia na carreira por mérito próprio.
Porém, os problemas chegaram. A confusão gerou-se nos livros de matemática e ninguém percebia a matéria. O quadrado sabia muito de ser um quadrado, contudo não compreendia as especificidades do rectângulo e menos ainda as do trapézio. Descobriu a importância de se ser mais abrangente. De se ser um "especialista" em abrangência.




Pôs o seu lugar à disposição e regressou ao seu antigo cargo. Aconselhou a matemática a chamar de novo o quadrilatero, que regressou surpreendido e feliz... Acabara de perceber que não tinha, de facto, um talento em nada, mas sim um pouco de talento em tudo!



quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Chuva molha tolos



Parecia que sempre ali tinham estado, quietos e monocórdicos. Ninguém sabia de onde tinham vindo nem como tinham aparecido. Tinham-se simplesmente instalado na vida das pessoas. Encontravam-se em todo o lado. Enfeitavam os melhores restaurantes, as enormes casas, os hotéis luxuosos e as lucrativas empresas.
Esperara-se deles grandes inteligências, em proporção ao tamanho das suas cabeças, mas na verdade não se dera por nada. Andavam por ali, os cabeçudos, sem grande utilidade, integrando um qualquer mobiliário urbano móvel.
Um dia vieram as chuvas torrenciais. O pânico generalizou-se pela cidade. As pessoas correram aflitas nas direcções mais impróprias tentando proteger-se, enquanto os cabeçudos permaneciam na ilusão de que fazia sol. Não davam por nada. Nem uma qualquer reacção tiveram. Tentaram chamá-los à razão, pediram-lhes que saissem da chuva, mas os cabeçudos continuaram na sua vida, de um lado para o outro, parecendo atarefados a fazer nada.
E enquanto se encharcavam e ensopavam, o resto das pessoas passeava na rua, aproveitando para se resguardar por baixo deles:
- Venha, cabeçudo! Tenho que ir apanhar o táxi!
- Eu preciso de ir ao supermercado! Acompanhe-me, cabeçuda!
Afinal, aquelas monstruosas cabeças até serviam para alguma coisa. Davam óptimos chapéus-de-chuva! E a chuva? Essa agora só molha tolos!


sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

O aspirador de Santa Augusta



Há muito que esquecera a sua tarefa: limpar, limpar, limpar. O mundo estava poído e sujo. As teias coziam buracos em erupção e as poeiras pairavam na atmosfera. Sim, estava na altura de limpar.
Agarrou no seu aspirador topo de gama e começou a sugar. Quase dois milénios de abandono deixariam marcas no mundo, sem dúvida! Sugou, sugou, sugou até que o seu aspirador deixou de trabalhar. Parou sem dizer nada, exausto, pronto a arrebentar. Que máquina poderia aguentar tamanha sujidade? E o mundo ainda com tanto por limpar!
Foi buscar outro aspirador, um mais velhinho mas que haveria de desenrascar. Porém, o aspirador assustado correu para Lisboa e decidiu mudar de vida. Transportar pessoas da baixa da cidade para o alto das colinas pareceu-lhe tarefa muito mais importante e própria para um aspirador.
Santa Augusta desesperou mas tentou ser justa. Se era essa a verdadeira vocação do aspirador, como exigir que ele fosse outra coisa?




Foi mudar o saco do topo de gama e aguardar que este recuperasse:
- Oh, céus! Se é a humanidade que suja, não cabe à humanidade limpar o seu lixo e assumir a sua responsabilidade de uma vez por todas?
Levantou-se e foi-se embora. Este não era trabalho para uma santa!

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Portas de Santo Antão



Virou a esquina do vazio, quente e seco, e procurou um sinal divino na areia do tempo. Quarenta dias, como que quarenta ladrões, disputavam a sua sanidade. Suportaria as dores do diabo e as tentações de Cristo. Ou seria ao contrário?
Uma, duas, três portas que antes ali não estavam abriram-se e no deserto nasceu um paraíso de sombras. Alucinações da fome e da sede ou tentações hipnotizantes do chamamento do diabo, resistiu-lhes.
As areias das dunas escorreram na ampulheta dos meses e deram a volta mais do que o prometido. Nada o obrigaria a cruzar portas escancaradas do pecado. Por livre vontade cruzou as portas da cidade. Regressou seguro. 

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Subir para baixo, descer para cima




Por alguma estranha razão só conseguia subir para baixo.  Apesar de já habituado, por vezes desejava viver nesse evidente pleonasmo físico de que subir é sempre para cima, mas fora a redundância, as suas pernas ou a sua mente acreditavam que subir era para baixo.
Um dia o chefe chamou-o e deu-lhe os parabéns. Devido ao seu bom desempenho, ia ser promovido! Que excitação! Finalmente subiria para cima! Ah, contudo, atendendo à crise, o seu ordenado seria reduzido em apenas um vigésimo. Apenas... Em respeito e consideração ao seu bom trabalho.
Nesse mesmo dia, o seu chefe foi punido pelo mau desempenho, e atendendo à situação, o seu ordenado seria apenas aumentado um vigésimo. Apenas... em castigo pelos maus resultados.
A partir desse dia percebeu que só descendo para cima chegaria mais longe! E jurou, que a partir desse dia, nunca mais subiria para baixo.